Sempre chega aquela parte dos formulários em que eu travo. Imagino que deva acontecer com todo mundo, por uma ou outra razão. Tem gente que quer ticar a caixinha de ‘feminino’, quando isso contrasta com o nome da certidão. Tem gente que hesita no ‘estado civil’. O meu caso é aquele espaço em branco depois de ‘ocupação’. Me formei em filosofia, o que, entre outras questões, não me garante o título de filósofa. Fiz um mestrado que me deu muitas coisas, menos um nome compreensível sob o qual eu pudesse assinar. Já dei aulas, mas de escrita criativa, o que sempre levantava suspeitas. Como sempre escrevi, ousei algumas vezes pousar essa alcunha no papel, mas notava o olhar, entre curioso e incrédulo, tal qual lançamos para esses animais raros, em situação de extinção.
Não é que seja um conflito fundamental na minha vida. É mais a velha coisa de não caber em nome nenhum, em lugar nenhum, e isso assim bem exposto, nos consultórios médicos, lojas, bancos e todo tipo de cartórios que avaliam a nossa submissão ao cis-tema. Preencher um formulário, então, como ato de resistência, porque lutamos justamente para estar fora, para permanecermos desajustadas e insubordinadas, ainda que o preço da solidão seja bem caro e injusto de pagar.
Então eu escrevo numa letra maior que todas, de forma, que sou COZINHEIRA, e dentro desse nome está a lida diária de botar peso e sustento na vida dos outros, de fazer um enxame acontecer nos sentidos, como quando a gente lê um poema incandescente e o espírito parece se soltar pelo céu da boca, dentro desse nome está o mundo com as suas estações e o verão cada vez mais seco do sudeste e a falta d´água e a má administração pública pra serem resolvidos e multiplicados com o que temos em casa, um nome a partir do qual a gente inventa comida com o que é resto, mato, casca, e descobre que o delicioso não é só o dentro sumarento das coisas, mas a inteireza da natureza. Sou uma cozinheira que não aceita a normalização da crueldade, aceitando para isso a radical experiência da empatia. Sou uma cozinheira que come para se curar. Faço da cozinha o meu manifesto e o meu altar.
ESPAGUETE DE ABOBRINHA E CENOURA COM MOLHO DE ABACATE (crudívoro)
INGREDIENTES: 2 abobrinhas, 1 cenoura, 1 cebola, 1 abacate, 2 avocados, 4 limões, sal e pimenta do reino.
Já falei aqui sobre alguns dos desafios de viver com artrite reumatoide. Como a minha doença ainda não está controlada, fico sempre pesquisando alternativas pra me ajudar a ter uma vida o mais perto do normal possível. Uma das coisas que vivia aparecendo nas minhas pesquisas, mas que eu ainda não tinha tido coragem de experimentar, é a alimentação viva. Li relatos de pessoas que se curaram de inúmeras doenças e resolvi experimentar como isso ia afetar o meu corpo. Estou vivendo essa experiência agora: de início, me propus a ficar um mês comendo apenas crus, pra descobrir um pouco mais sobre esse tipo de alimentação e ver como ela iria me impactar. Pretendo escrever mais sobre isso, mas já adianto que minhas dores e o inchaço nas articulações desapareceram na primeira semana, levando junto o cansaço que me acompanhava nos últimos anos.
É uma primeira experiência, e tem sido tão deliciosa quanto sofrida. O meu registro afetivo (como o da maioria das pessoas) está na comida cozida, e conford food pra mim é sinônimo de um prato quentinho de carboidrato… Mas tive alguns momentos sublimes, como por exemplo o primeiro dia que acordei sem sentir dor, depois de anos convivendo com dores constantes, ou então ter conseguido passar uma tarde fora de casa com a minha família. Também foram sublimes algumas descobertas na cozinha, e é ai que entra esse macarrão aqui. A gente já tinha um espiralizador, e já fazia macarrão de legumes, mas geralmente esquentávamos, e sempre fazíamos com molho de tomates. Dai que eu adoro guacamole, e tive a ideia de usá-la num molho pro macarrão de vegetais, já que eles são “cozidos” com limão. Ficou perfeito, fresco, lúdico e muito reconfortante também.
Se você não tiver um espiralizador de vegetais, pode fazer com descascador ou ralador, dependendo do que tiver ai. O importante é fazer tirinhas finas, com a abobrinha, a cenoura e a cebola. Ai a gente põe um pouco de sal e espreme 2 limões, fazendo uma ‘massagem’ nos vegetais. Deixa descansar nessa salmourinha por um tempo, que ela vai ‘cozinhar’ os vegetais, deixando-os mais molinhos. Enquanto isso, a gente amassa o abacate e os avocados, tempera com os outros 2 limões, sal e pimenta do reino. Uso essa combinação de avocado e abacate porque acho que dá uma textura perfeita, já que o abacate é mais líquido e o avocado mais cremoso. Mas não tem problema nenhum usar só abacate, se você não tiver acesso fácil ao avocado.
Pra finalizar, eu escorro um pouquinho o limão dos vegetais, e ai é só misturá-los com a guacamole, e servir. Acho que essa receita é um perfeito exemplo dos princípios que regem a minha cozinha, pois ela une a cura com a liberdade criativa, dentro dos preceitos éticos que pratico. Também fica linda e uma delícia, o que não é menos importante, né?
Bom, e logo aqui embaixo tem uma novidade: agora estamos também no youtube! Dá uma olhada na versão vídeo da receita e se inscreve no canal, pra acompanhar as novidades (que serão muitas!)
Pingback: Manifesto – Laboratório dos sentidos | Ensaio Aberto – Teofilo Tostes Daniel
Sempre leio, releio e reassisto o vídeo. Gostaria de saber sobre o que você diz na sua poesia:
“O mestrado me deu muitas coisas, menos um nome compreensível…”.
Adoro seu trabalho. Beijos.
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desculpa a demora em te responder! que bom saber que, de algum modo, o texto te toca e te faz retornar! sobre o trecho que você destacou, quis dizer que valorizo muito mais as coisas sutis que aprendi do que o título que adquiri. e que ser mestre em Educação, Arte e História da cultura não é uma coisa que tem muita utilidade, sabe? hahahaha! beijo grande, muito obrigada! ❤
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Obrigada pela resposta, Fabi. Me desculpe a demora em responder também. Beijos grandes!
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