Teve um dia, eu me lembro, em que entendi que o que saía do meu forno não era comida, mas sim confirmação. Sempre tive dimensão do chamado, embora não respondesse com naturalidade, e talvez por isso, pela desconfiança, demorei a aceitar, demorei a começar a operar a magia. Dentre tudo o que havia a temer, foi a solidão. Essa sensação de não ter vindo de lugar nenhum, de não ter linhagem pra respeitar, de seguir sem dar satisfação, tão livre quanto desamparada. A solidão reteve meu gesto suspenso. A solidão me nomeou por muitos anos.
A casa cheira a café e especiarias. O cheiro carrega o incontável do tempo, uma multidão antiga que sempre está a me acompanhar. Já não estou sozinha, irmanada a toda gente, parte em todo universo, nem mais, nem menos. Sou feita a mesma matéria que tudo o mais, ligada ao mundo por esse silêncio atávico e pela fluidez irrepresável. Daquela que fui para esta que estou sendo, o que mudou é que a magia me tem querido assim: manifestação da minha própria transformação.
Deito o café na xícara, deixo o pó assentar. Do forno, o bolo que foi intuído: maçã, canela, cravo, noz moscada. Minha avó soprando que a herança era minha. “Teu dote, teu reino!” Sorrio, aceito, deixo que eles trabalhem em mim. Abdico do meu poder pelo poder da terra. Como, faminta.
BOLO DE MAÇÃ E ESPECIARIAS E CAFÉ TURCO
INGREDIENTES: 4 maçãs, leite vegetal, semente de linhaça, óleo, estévia, farinha de arroz, fécula de batata, polvilho doce, fermento, noz moscada, canela, cravo. Para o café: grãos de café moído bem fino, cardamomo, água, açúcar.
Comece cortando a maçã no meio, no sentido horizontal. Olhe para ela, bem no centro. Tá vendo? A surpresa e o encantamento são a porta para a magia que reside dentro de todas as coisas! Bom: coloque as 4 maçãs, descascadas e picadas, no liquidificador. Lá, também, coloque 1 xícara de leite vegetal, ¼ de xícara de óleo, 1 xícara de estévia culinário, 2 colheres de sopa de linhaça hidratada na água e uma pitada generosa das especiarias: canela, cravo e noz moscada. Batendo bem, vai ficar um líquido ligeiramente espesso, que a gente vai misturar com 3 xícaras de mix de farinha sem glúten e 1 colher de sopa de fermento. Você pode usar um mix de farinhas pronto ou fazer o seu mix em casa, misturando 3 xícaras de farinha de arroz com 1/3 de xícara de polvilho doce e 2/3 de xícara de fécula de batata. Assei em formas pequenas, de cupcake, mas pode assar em forma de bolo normal (a quantidade dá 1 forma redonda de furo no meio, ou 12 cupcakes). Lembrando que existem dois segredos pro bolo vegano dar certo: fogo baixo e forma com furo, que distribui melhor o calor. Depois de meia hora pode abrir o forno e fazer o teste do palito!
O café turco é um ensinamento: une o ritual da preparação correta, o da degustação e o da leitura da sina. Para preparar o café, você vai precisar moer o grão bem fino, na textura de um talco. Se não tiver um moedor em casa, pode pedir pra moer ou comprar o pó já moído (à turca). Também é bem tradicional moer o cardamomo junto do grão de café – tem até alguns pós para café turco que já vem com cardamomo. Existe um bule típico para se fazer café turco, chamado cezve, que tem 3 funções principais: ele tem um cabo comprido, que protege a mão de queimaduras durante o preparo, a boca mais estreita do que a base proporciona o surgimento de espuma e o bico facilita a hora de servir. Então, você vai colocar 1 colher do pó de café, 1 colher de açúcar e 1 xícara (use a que você vai servir como medida) de água, direto no cezve. Se preferir, pode fazer o café sem açúcar, mas eu gosto de colocar porque ele ajuda o pó a aderir na parede da xícara, na hora de fazer a leitura. Mexa bem todos os ingredientes e leve ao fogo baixo. Você vai esperar ferver a primeira vez (se você estiver usando um cezve, o café vai subir até quase a borda), retirar do fogo por alguns segundos, colocar no fogo de novo. Quando ferver de novo, faz o mesmo procedimento: tira, espera um pouco, coloca de novo. O café tem que ferver 3 vezes. Depois, é só servir na xícara, e deixar o pó decantar por uns 2 minutinhos, antes de beber. O pó vai ficar depositado no fundo da xícara, e você deve beber o café até sentir a borra chegar na boca. Aí, poderá proceder na leitura da borra de café. Coloque o pires sobre a xícara e vire a xícara ao contrário, num movimento rápido. Deixe descansar nessa posição um pouquinho. É tradição colocar uma moeda em cima da xícara, caso alguém esteja abrindo a xícara para você, pra que a pessoa que está fazendo a leitura tenha prosperidade. Eu gosto de colocar a minha aliança (“não quero dinheiro, eu só quero amaaar”…), e sei que já posso abrir a xícara quando o anel está quente. Então, use tudo o que você puder pra enxergar os padrões criados pela borra de café na xicara. Interpretar é nada mais do que deixar a criança falar a forma que vê nas nuvens. Quem diria, a tua xícara de café, do tamanho desse céu…
update: receita atualizada para a versão sem glúten!